sexta-feira, novembro 30, 2007

Os gregos IV - Safo

.....Contemplo como o igual dos próprios deuses


.....Contemplo como o igual dos próprios deuses
.....esse homem que sentado à tua frente
.....escuta assim de perto quando falas
.............com tal doçura,


.....e ris cheia de graça. .. Mal te vejo
.....o coração se agita no meu peito,
.....do fundo da garganta já não sai
.............a minha voz,


.....a língua como que se parte, corre
.....um tênue fogo sob a minha pele,
.....os olhos deixam de enxergar, os meus
.............ouvidos zumbem,


.....e banho-me de suor, e tremo toda,
.....e logo fico verde como as ervas,
.....e pouco falta para que eu não morra
.............ou enlouqueça.



(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)


(Safo, a Décima Musa. In: Poesia grega e latina)

quinta-feira, novembro 29, 2007

Os gregos III - Píndaro

........O sonho de uma sombra


........A sorte dos mortais
........cresce num só momento;
........e um só momento basta
........para a lançar por terra,
........quando o cruel destino
........a venha sacudir.



........Efêmeros! que somos?
........que não somos? .. O homem
........é o sonho de uma sombra.
........Mas quando os deuses lançam
........sobre ele a sua luz,
........claro esplendor o envolve
........e doce é então a vida.



(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)


(Píndaro de Cinoscéfalas. In: Poesia grega e latina)

quarta-feira, novembro 28, 2007

Os gregos II - Anacreonte

........A moça esquiva


........Por que me foges, ó potranca trácia,
........lançando-me esse olhar oblíquo?
........Presumes que me falte habilidade?


........Sabe que eu poderia sem transtorno
........impor-te o freio e dominando as rédeas
........fazer com que girasses em redor da meta.


........Se agora brincas nas campinas e nos pastos
........saltando leve, é que não tens um laçador
........que saiba cavalgar-te com destreza...



(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)


(Anacreonte de Teos. In: Poesia grega e latina)

terça-feira, novembro 27, 2007

Os gregos I - Arquíloco

.
.
.
..........Com a lança

..........Com a lança eu alcanço
..........meu pão de cevada;
..........com a lança eu consigo
..........o meu vinho ismárico;
..........na lança apoiado
..........eu bebo esse vinho.
.
.
.
.
(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)


(Arquíloco de Paros. In: Poesia grega e latina)

segunda-feira, novembro 26, 2007

Poesia contemporânea: Seminário Internacional Subjetividades e Identidades em Devir

Amigos,

Hoje, na UFF, começa um riquíssimo seminário internacional que tem como principal foco a discussão de poéticas contemporâneas. O evento traz pesquisadores e poetas de universidades brasileiras, portuguesas e francesas.

A Celia Pedrosa, uma das organizadoras do evento e professora da UFF, muito gentilmente me convidou para participar da abertura, em que falarei alguma coisa e lerei poemas. Será bastante interessante, aposto. Por isso deixo a programação de hoje:


ABERTURA - 18h - Auditório Macunaíma

CONFERÊNCIA - Dominique Combe, Université Paris III - "La nostalgie de l'épique"

POETAS E POEMAS: leituras

Lançamentos:

A Gênese do Amor, poemas de Ana Luísa Amaral, Editora Gryphos
Revista Inimigo Rumor, n.20, Editora 7Letras
Revista Modo de Usar & Co., Editora Berinjela
Cadernos de Literatura Comparada Instituto Margarida Losa – Univ. do Porto, n. 16
Experiencia, cuerpo y subjetividades: literatura brasileña contemporánea (org. de Florencia Garramuño, Gonzalo Aguilar e Luciana de Leone, Editora Viterbo (Rosario/Argentina)

___

Para o restante da programação, clique aqui.
Até lá!

sexta-feira, novembro 23, 2007

A Adoração dos Magos

Gentile quer salientar que o instante místico acontece no cotidiano. A caça é essencialmente "naturalidade educada", é considerada uma forma de vida ideal, adequada às cortes. Sendo a forma de vida escolhida, é também um momento religioso (a revelação divina também é vista como algo reservado aos privilegiados). Enfim, o ideal estético é sentido como ideal de vida (acontece agora no gótico internacional, acontecerá séculos mais tarde no Maneirismo e no Art Nouveau); dessa forma, é impossível uma distinção entre arte e vida, é impossível conferir à arte uma função específica.

Masaccio reagirá contra essa situação. (...)

Masaccio diz que a arte não se identifica com a vida, mas está fora do espaço da vida, num outro espaço e num outro tempo claramente distintos. A arte não se identifica com o ideal da vida dos príncipes, aliás, não se identifica com nenhum tipo de vida; é uma disciplina como a ciência (ninguém pensaria na física nuclear como o ideal de sua existência, porque a ciência é uma disciplina praticada no interior da coletividade, mas por especialistas). A arte não é o belo da natureza e não é sagrada. A arte é algo feito pelo homem e por isso diz respeito à responsabilidade moral dele. Procurar um álibe para a arte no "belo" da natureza é um erro, assim como é um erro procurar justificativas da ação histórica dentro da natureza.


(Giulio Carlo Argan. In: Clássico anticlássico)

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Gentile da Fabriano, Adoração dos Magos, 1423


Masaccio, Adoração dos Magos, 1426

quinta-feira, novembro 22, 2007

A Leitura Crítica da Obra de Arte

É fácil reconstruir o significado simbólico, mas existem muitas coisas para as quais é impossível encontrar um significado simbólico (por exemplo, os seixos aos pés da cruz); essas coisas são evidentemente portadoras de um significado que nos escapa, mas no entanto é um significado. A obra de arte não é um particular que possui valor universal (como diria Benedetto Croce)? Então, se na dor de um indivíduo vejo o espelho da dor universal, o jovem Werther deixa de ser um apaixonado desiludido para se tornar modelo de uma geração. Há uma certa verdade nisso: na obra de arte tudo pode possuir muitos significados, muitas possibilidades de interpretação. Na obra de arte, não apenas é preciso buscar o valor de cada signo (um valor semântico, ou de comunicação), mas cada signo se apresenta também como sin-semântico, como significativo ao mesmo tempo de si e de outra coisa, como um termo de relação. Portanto, é impossível satisfazer-se com um significado unívoco, como fica claro pela leitura de algumas obras muito importantes.


(Giulio Carlo Argan. In: Clássico anticlássico)

quarta-feira, novembro 21, 2007

Babel - ou futuro da fala

Um verdadeiro homem só pode ser, com prazer e proveito, bilíngüe. Uma língua ainda que minuciosamente codificada nas suas regras e normas, é bastante difícil de dominar e difundir; duas são o limite humano de qualquer homem que não nasceu para se suicidar como filólogo da inutilidade.
Devemos transformar o inglês no latim do mundo inteiro. Para isso não basta ter uma grande população, mas também uma grande literatura e a capacidade de vir a ter uma literatura ainda maior.
(...)
Usando do inglês como língua científica e geral, usaremos do português como língua literária e particular. Teremos, no império como na cultura, uma vida doméstica e uma vida pública. Para o que queremos aprender leremos inglês; para o que queremos sentir, português. Para o que queremos ensinar, falaremos inglês; português para o que queremos dizer.
(...)
O português é (1) a mais rica e mais complexa das línguas românicas, (2) uma das cinco línguas imperiais, (3) é falado, senão por muita gente, pelo menos do Oriente ao Ocidente, ao contrário de todas as línguas menos o inglês, e, até certo ponto o francês, (4) é fácil de aprender a quem saiba já espanhol (castelhano) e, em certo modo, italiano - isto é, não é uma língua isolada, (5) é a língua falada num grande país crescente - o Brasil (podia ser falada de Oriente a Ocidente e não ser falada por uma grande nação).
.
(Fernando Pessoa. In: A Língua Portuguesa)

terça-feira, novembro 20, 2007

O problema ortográfico

O problema da ortografia é o da palavra escrita, nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada, visto que esta nada tem com aquela; que, sendo a palavra escrita um produto da cultura, ao contrário da falada, que o é do simples uso, hábito ou moda, e sendo a cultura um produto do indivíduo, cada indivíduo tem - salvo casos episódicos de força maior - o dever cultural de escrever na ortografia que ache melhor, visto que essa ortografia é a expressão de esse pensamento; que esse indivíduo tem o dever social de fazer a propaganda, com a força de pensamento que nele caiba, de tal ortografia.


(Fernando Pessoa. In: A Língua Portuguesa)

segunda-feira, novembro 19, 2007

Floresta Crepuscular


Lasar Segall, 1956

sábado, novembro 17, 2007

João Cabral de Melo Neto VI

Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebra dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.


(João Cabral de Melo Neto. In: A educação pela pedra)

sexta-feira, novembro 16, 2007

João Cabral de Melo Neto V

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


A


Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.


B


Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é a sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)


C


Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.


D


Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)


E


Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que estas têm as mãos férteis,
aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.


F


Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.


G


Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.


H


Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.


I


Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.


*****


De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que ais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe a outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pode a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.



(In: João Cabral de Melo Neto. Uma faca só lâmina)

quinta-feira, novembro 15, 2007

João Cabral de Melo Neto IV

Tecendo a manhã


1


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


2


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


(João Cabral de Melo Neto. In: A educação pela pedra)

quarta-feira, novembro 14, 2007

João Cabral de Melo Neto III

IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


(João Cabral de Melo Neto. In: O Cão sem plumas)


terça-feira, novembro 13, 2007

João Cabral de Melo Neto II

II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


(João Cabral de Melo Neto. In: O Cão sem plumas)

segunda-feira, novembro 12, 2007

João Cabral de Melo Neto I

A escultura de Mary Vieira


dar a qualquer matéria
a aritmética do metal
dar lâmina ao metal
e à lâmina alumínio

dar ao número ímpar
o acabamento do par
então ao número par
o assentamento do quatro

dar a qualquer linha
projeto a pino de reta
dar ao círculo sua reta
sua racional de quadrado

dar à escultura o limpo
de uma máquina de arte
por sua vez capaz da arte
de dar-se um espaço explícito


(João Cabral de Melo Neto. In: Museu de Tudo)

sexta-feira, novembro 09, 2007

O ladrão


Oswaldo Goeldi, 1955

quinta-feira, novembro 08, 2007

Ovi-Sungo, Treze Poetas de Angola




Ovi-Sungo, Treze Poetas de Angola, livro organizado por Claudio Daniel, é a primeira antologia publicada no Brasil com autores desse país africano, como Arlindo Barbeitos, David Mestre, João Maimona, Abreu Paxe e Maria Alexandre Dáskalos. A coletânea, publicada pela Lumme Editor, traz notas biográficas dos poetas, dois ensaios críticos, escritos por especialistas em literatura africana de língua portuguesa, e um glossário, no final do volume, com o significado de palavras em idiomas locais, como o umbundu, citadas nos poemas. A história da literatura angolana contemporânea está relacionada ao movimento pela emancipação nacional: os primeiros nomes significativos de sua poesia, como Agostinho Neto, David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho, participaram ativamente da resistência à ocupação colonial portuguesa, que durou até a Revolução dos Cravos em Portugal, em 1973. Com a queda da ditadura salazarista e a independência angolana, veio a guerra civil entre os grupos políticos UNITA, FNLA e MPLA, que se estenderia até o final da década de 1990, quando um acordo político permite o restabelecimento da democracia, o pluripartidarismo e eleições livres. Dentro desse quadro de reconstrução nacional, surgiram diferentes tendências literárias, desde a poesia engajada até a poesia étnica e a experimental, com influência do concretismo brasileiro (como ocorre, por exemplo, em Lopito Feijoó e Frederico Ningi). O livro faz um mapeamento de várias tendências dessa poesia, com ênfase na produção mais recente, dos anos 80 e 90, mas incluindo também alguns nomes históricos, das décadas de 60 e 70, como David Mestre e Arlindo Barbeitos.


Lançamento: dia 09 de novembro, sexta-feira, a partir das 19h, na Academia Internacional de Cinema, em São Paulo, durante o evento Zunái in Concert.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Lançamento Confraria 2 Anos

O lançamento da Revista Confraria - 2 Anos será no Oi Futuro, amanhã, dia 08.11, às 18h.

Segue o release:

A editora Confraria do Vento, com o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lança, no dia 8 de novembro, às 18 horas, no Oi Futuro, o livro Confraria 2 Anos .

Após dois anos sendo publicada na internet com sucesso, a Revista Confraria finalmente ganha uma versão impressa.


Edição comemorativa da revista, este livro reúne trabalhos inéditos de 71 dos autores que já marcaram presença na revista eletrônica, entre eles Manoel de Barros, Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Gerardo Mello Mourão, João Gilberto Noll, Nei Lopes, Silviano Santiago, Charles Kiefer, Marcelino Freire, Carlos Nejar, Raul Antelo, Emmanuel Carneiro Leão e Eduardo Portella. A edição traz também traduções de autores como Ghérasim Luca, Serge Pey, Hagiwara Sakutaro e Mathieu Bénézet, que, apesar de consagrados, permaneciam inéditos em português. Entre outros destaques, a revista traz a faceta oculta de alguns autores e apresenta um Allen Ginsberg ensaísta, um Jean Baudrillard fotógrafo, um Boaventura de Sousa Santos contista; além de ser ilustrada em cores, sobre papel couché, por obras de 8 grandes artistas plásticos, como Anna Bella Geiger, Lena Bergstein e François Schuiten. Entre ensaios, poesia e contos, esta edição luxuosa é, certamente, um significativo panorama da literatura e do pensamento atuais.


Confraria é con-fluir de idéias opostas, sem buscar sínteses. Não procuramos respostas, preferimos a dúvida. Preferimos as diferenças ao consenso que tudo dilui. Na era das egogaláxias, dos gênios encastelados em suas verdades, Confraria quer as falsas verdades e as mentiras autênticas.


Assim como a edição eletrônica continuou firme nessas propostas de democratização e diversidade que a consolidaram como uma das revistas literárias mais lidas e respeitadas do país, com leitores e colaboradores de todo o mundo, a edição impressa traz também trabalhos de novos autores, muitos tendo sido publicados pela primeira vez.


Lista dos autores:

ENSAIOS

Aderaldo Luciano
Allen Ginsberg
Ana Alencar
Ana Lúcia Moraes
Benoît Peeters
Carlos Felipe Moisés
Charles Kiefer
Daniel Arruda Nascimento
Eduardo Portella
Elizabeth Muylaert Duque Estrada
Emmanuel Carneiro Leão
Ezra Pound
Ghérasim Luca
Gilles Ivain (Ivan Chtcheglov)
Gustavo Olivieri
Luiz Rohden
Manoel de Barros
Manuel Antônio de Castro
Marcelo Diniz
Márcio-André
Paula Glenadel
Raul Antelo
Régis Bonvicino
Rod Britto
Silviano Santiago
Victor Paes

IMAGENS

Anna Bella Geiger
Fabien Rodrigues
Fernando Figueiredo
François Schuiten
Jean Baudrillard
Lena Bergstein
Paula Donolato Jorge
Paulo Ponte Sousa

POESIA

Adolfo Montejo Navas
Adriana Bebiano
Augusto de Campos
Carlos Nejar
Edson Bueno de Camargo
Ericson Pires
Ferreira Gullar
Gabriela Nobre
Gerardo Mello Mourão
Gonçalo M. Tavares
Ivo Barroso
Jean Baudrillard
Karinna Gulias
Marcelo Ariel
Rita Dahl
Ronaldo Ferrito

CONTOS

Boaventura de Sousa Santos
Fernando Bonassi
Guilherme Zarvos
Gustavo Rios
João Gilberto Noll
Luiz Ruffato
Marcelino Freire
Muhammad Ibrahim Bu'allu
Nei Lopes
Nelson de Oliveira
Rodrigo Ielpo
Silvio Fiorani

PHANTASCOPIA

Antonin Artaud
Arjen Duinker
Edwin Torres
Guennádi Aigui
Hagiwara Sakutaro
Mathieu Bénézet
Rafael Alberti
Serge Pey
Stephen Rodefer
Zeami Motokiyo


O Oi Futuro fica na rua 2 de dezembro, 63, 8º nível, Flamengo, Rio de Janeiro.

terça-feira, novembro 06, 2007

Bere'Shith: A cena da origem IV

II

1. E foram conclusos ... § ... o céufogoágua e a terra ..... §
... e seu todo-plenário

2. E Deus concluiu
... § ... no dia sétimo ...... §§
... a obra ... § ... do seu fazer ...... §§§
... E ele descansou ... § ... no dia sétimo ...... §§
... da obra toda-feita ... § ... do seu fazer

3. E Deus bendisse
... § ... o dia sétimo ...... §§
... e o ... § ... santificou ... ... ... ... §§§
... Pois nele descansou ... § ... da obra toda-feita ....... §§
... que Deus criou ... § ... no fazer

4. Esta a gesta do céufogoágua
... § ... e da terra ...... §
... enquanto eram criados ... §§§
... No dia ... § ... de os fazer ... § ... Ele-O-Nome-Deus ..... §
... terra e céufogoágua


(tradução: Haroldo de Campos)


(In: Bere'shith: A cena da origem)

segunda-feira, novembro 05, 2007

Bere'Shith: A cena da origem III

20. E Deus disse ..... §§
.... que as águas esfervilhem ......
§§
.... seres fervilhantes ...
§ ... alma-da-vida ..... §§§
.... E aves ....
§ .... voem sobre a terra ...... §§
.... face à face ....
§ .... do céufogoágua

21. E Deus criou ......
§§
.... os grandes ...
§ ... monstros do mar ....... §§§
.... E todas as almas-de-vida rastejantes ....
§
.... que fervilham nas águas ...
§ ... segundo sua espécie ... §
.... e todas as aves de pena ...
§ ... segundo sua espécie .... §§
.... E Deus viu ...
§ ... que era bom

22. E Deus ...
§ ... os bendisse .. § .. dizendo .... §§§
.... Frutificai multiplicai ...
§ ... cumulai nas águas ... §
.... do mar-de-águas .....
§§
.... e que a ave ...
§ ... multiplique na terra

23. E foi tarde e foi manhã ...
§
.... dia quinto

24. E Deus disse ...
§ ... produza a terra .. § .. almas-de-vida ... §
.... segundo sua espécie ......
§§
.... animais-gado e répteis ...
§ ... e animais-feras .... §
.... segundo sua espécie ....
§§§
.... E foi assim

25. E Deus fez os animais-feras ...
§ ... segundo sua espécie ... §
.... e os animais-gado ...
§ ... segundo sua espécie ..... §§
.... e ..
§ .. todos os répteis do solo .. § .. segundo sua espécie .. §§§
.... E Deus viu ...
§ ... que era bom

26. E Deus disse ....
§§
.... façamos o homem ...
§ ... à nossa imagem ... §
.... conforme-a-nós-em-semelhança .......
§§§
.... E que eles dominem sobre os peixes do mar
... §
.... e sobre as aves do céu
... §
.... e sobre os animais-gado ... § ... e sobre toda a terra .... §§
.... e sobre todos os répteis ... § ... que rastejem sobre a terra

27. E Deus criou o homem
... § ... à sua imagem ..... §§
.... à imagem de Deus
... § ... ele o criou ...... §§§
.... Macho e fêmea ... § ... ele os criou

28. E Deus ...
§ ... os bendisse .... §§
.... e Deus ... § ... lhes disse ... §
.... frutificai multiplicai ... § ... cumulai na terra .... §
.... e subjugai-a ...... §§§
.... E dominai ... § ... sobre os peixes do mar ... §
.... e sobre as aves do céu .... §§
.... e sobre todo animal ... § ... que rasteje sobre a terra

29. E Deus disse
... §
.... eis que vos dei ... §
.... toda a erva ... § ... que gera semente ... §
.... sobre a face de toda a terra ..... §§
.... e toda a árvore ... § ... onde o fruto-da-árvore .... §
.... gera semente ...... §§§
.... Isto vos caberá ... § ... por alimento

30. E para todo animal da terra ....
§
.... e para toda ave do céu .... §
.... e para tudo ... § ... o que rasteja sobre a terra ... §
.... com alma-de-vida dentro ..... §§
.... a erva o verde-todo-verdura .... § ... por alimento .... §§§
.... E foi assim

31. E Deus viu
... § ... o seu feito no todo .... §
.... e eis que era ... § ... muito bom ...... §§§
.... E foi tarde e foi manhã .... §
.... dia sexto


(tradução: Haroldo de Campos)


(In: Bere'shith: A cena da origem)