domingo, dezembro 21, 2008

Herberto Helder III

III


Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz
num peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada puramente sobre o ombro.
- Junto a coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos altos - meus pensamentos criam-se
com um outrora lento, um sabor
de terra velha e pão diurno.

E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
da minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.

Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos sobressaltados e antigos.
Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.


[Herberto Helder. In: Ou o poema contínuo]